Eu havia acabado de sair do
trabalho. Fim de expediente. No momento em que fechava a porta, ela passou.
Tive exatamente três segundos e meio para virar e vê-la de frente. Exatamente o
tempo que precisei para me distrair, procurar as chaves do carro no bolso, e
lembrar que vim trabalhar de ônibus. Já era a quinta vez, só neste mês, que o
Chevette 1989 visitava a oficina do Wellington. Tá foda.
Ela passou. Eu meio que
hipnotizado, segui. Era estranho como as costas daquela mulher me fascinavam.
Acho que era o mistério. O suspense de não ver seu rosto. Existe algo de
atraente, de sedutor, de erótico, nas incertezas. O desconhecido fascina,
consome. Não conseguia parar de olhar para as suas costas, suas formas, suas
curvas, pernas, cabelo e bunda. Não sou um "típico brasileiro". Não
gosto de futebol, evito praias, feijoadas me dão azia e prefiro peitos e
barrigas. Isso não quer dizer que eu não goste de bundas, só demonstra que elas
não estão no topo das minhas atrações sexuais. Mas a bunda daquela mulher de
cabelos negros parecia um pêndulo. Cada balançar me deixava mais hipnotizado.
Tive vontade de apressar os
passos, passar dela e, disfarçadamente, olhar para trás, para então saber como
era seu rosto. Mas desisti. Eu estava gostando daquele mistério todo, e, sem
perceber, eu também já havia formado um rosto na minha mente. Não saberia descrevê-lo.
Só sei que era lindo. De uma beleza sutil. Nada de lábios carnudos, nem olhos
sedutores. Na minha cabeça ela era sutilmente linda.
Continuei seguindo-a, e até
esqueci que o caminho do ponto de ônibus era para o outro lado. Não tem
problema. Ando um pouco acima do peso. Vou a pé.
Em um dado momento comecei a
perceber que as pessoas me olhavam estranho. Acho que ela também percebeu a
minha presença. E estranhou. Apressou os passos. Acho que tava com medo. Não
sabia se mudava a minha rota, deixava-a de lado e voltava para a minha vida
normal, ou se avançava, pedia desculpas e esperava para ver qual seria a reação
dela.
Resolvi então não reagir e
continuei andando e observando-a. Quase vi seu rosto umas duas ou três vezes,
mas sempre passava um carro ou alguém me pedia uma informação, desviando meu
foco e minha percepção. Mas ela permanecia com seu rosto em minha mente. Num
desses desvios de foco, após alguém me perguntar as horas, observei como seu
cabelo dançava ao vento enquanto ela atravessava a rua. Era uma mistura de balé
clássico com dança contemporânea. Não entendo nada de dança e nem saberia dizer
a diferença de um estilo para o outro, mas acho que são bem diferentes, e é
mais ou menos essa ideia que eu quero passar. Seu cabelo fazia uma coreografia
que parecia ter sido espontaneamente ensaiada. Sorri de lado com a imbecilidade
de meus pensamentos.
Ouvi algo como uma corneta. Um
barulho crescente. Senti meu quadril doer. Doía muito. Ouvi alguns gritos e
muita gente pedindo para que eu não me mexesse. Havia muitos rostos. Eram todos
vultos embaçados e disformes. No meio daquelas manchas indefinidas, consegui
perceber apenas um rosto. Justamente aquele que eu nunca vi. Reconheci suas
formas, seu cabelo... Não tenho certeza, mas acho que sorri no exato momento em
que ela me olhou e disse que tudo ficaria bem.
E quando meus olhos começaram a
focar seus traços. Quando comecei a ver sua boca, seus olhos e seu nariz...
Quando tudo começou a querer tomar forma, tive medo. Temi que tudo tivesse sido
em vão. Temi conhecer uma outra mulher, diferente da que eu havia acompanhado,
idealizado e sonhado por longos quinze minutos de caminhada. Então num ato de
extrema covardia, fechei meus olhos. Fechei meus olhos e levei comigo a face da
única mulher sem rosto pela qual me apaixonei. E era linda. Eu sei que era. Eu
sei.
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